O domínio do fogo introduziu o costume de cozinhar os alimentos, o que trouxe a vantagem de um melhor aproveitamento dos nutrientes. Porém, é claro que não se pode imaginar o homem das cavernas fazê-lo com esse objetivo. Em seu livro ‘De caçador a gourmet: uma história da gastronomia’, Ariovaldo Franco observa que as temperaturas elevadas “liberam odores e sabores” dos alimentos; para Rob Dunn e Monica Sanchez, também, o que levou nossa espécie a assar as carnes e vegetais foi a busca do sabor – a vantagem nutricional, considerada um passo importante na evolução humana, teria sido um efeito colateral, como demonstram em Delicious: the evolution of flavour and how it made us human, recém-publicado e ainda sem tradução no Brasil.
As startups do Vale do Silício que apostam no hambúrguer produzido em laboratório, por cultura de tecidos, ainda penam para criar sabor, até aqui à custa de cargas pesadas de sódio; assim como todos os esforços para fazer produtos vegetais “com sabor idêntico ao da carne”…será que comida fake é único caminho sustentável? Sob quais critérios?
Em diferentes culturas a carne vermelha, em especial a bovina, tornou-se alimento valorizado. Antonio Candido, em seu clássico ‘Os parceiros do Rio Bonito’, descreve em detalhes como a alimentação do caipira paulista era baseada em vegetais nativos, frangos e suínos; a carne bovina uma iguaria reservada a ocasiões especiais e objeto de desejo. Em busca de uma refeição de carne de boi o personagem de ‘A marvada carne’ encontra o romance com a adorável cabocla, devota de Santo Antonio, interpretada por Fernanda Torres. A posse de bovinos é sinal de status social, das tribos africanas à moda ‘O Rei do Gado’.
Os pecados da carne
Essa história chega aos dias atuais, quando o modo como o alimento é produzido e seu impacto no futuro se torna preocupação tão importante quanto os atributos intrínsecos do alimento, como sabor e qualidade. E traz desafios à vida de quem produz.
Há 8 anos, a Universidade Corporativa da MSD Saúde Animal conduziu uma pesquisa em parceria com o Prof. José Luiz Tejon Megido, da ESPM, sobre como a mídia não especializada tratava a pecuária. A percepção de muitos profissionais deste setor era de que havia sempre uma ênfase na associação com questões como o desmatamento, os maus tratos aos animais e problemas de saúde pública. Foram monitorados alguns dos principais veículos de alcance nacional, jornais, revistas e telejornais, com a classificação das matérias em “positivas”, “negativas” ou “neutras”. Não houve evidências que demonstrassem qualquer viés; por outro lado, ficou clara a pouca atenção dada à atividade, com poucas matérias ao longo do período estudado. No evento com a mídia especializada em que se apresentaram e discutiram os resultados, a conclusão: não somos mal vistos, e sim muito pouco vistos, e este é o problema real.
Será que a defesa da pecuária era feita corretamente? Seria producente negar os números do desmatamento e das mudanças climáticas? O perigo das ações reativas não seria o de misturar pecuaristas sérios a criminosos, e assim transformar o espírito de corpo em espírito de porco?
Iniciativas como o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS), uma associação que reúne de pecuaristas e frigoríficos a organizações ambientalistas não governamentais, e a Estratégia Produzir, Conservar, Incluir (PCI), em Mato Grosso, têm apontado novos caminhos, desenvolvido um trabalho sério e coordenado para separar o joio do trigo, fomentar as melhores práticas e, no caso da PCI, também combater os crimes ambientais.
É fácil notar que o aumento da demanda por alimentos nobres como as proteínas de origem animal no início dos anos 2000 se deveu menos ao crescimento populacional, e mais ao aumento da renda em países ditos emergentes que aplicaram a inclusão pelo consumo na base da pirâmide social. Há um conceito básico na economia da alimentação: carboidratos são chamados bens “inferiores”, cujo consumo tende a estagnar ou se reduzir quando a renda cresce; com as proteínas de origem animal acontece o contrário, o consumo acompanha a ascensão da renda, por isso são consideradas bens “superiores”. Os ciclos econômicos sempre demonstram isso: nos períodos mais difíceis, os mais pobres tiram seu sustento de fontes energéticas baratas como açúcar e arroz, e quando têm mais dinheiro procuram as carnes e laticínios. Por isso, alguns economistas autointitulados liberais tentam ajustar a proposta: não se pode proibir a carne, afinal, somos liberais, mas temos que restringir o consumo através do preço…Isto quer dizer: achamos que a produção de carne faz mal ao meio ambiente, então vamos limitar o direito de cometer o pecado de lesa-planeta a alguns privilegiados. Ou: “pobres do mundo, sentimos muitíssimo, mas vocês chegaram atrasados para o churrasco”. O cinismo chega a ser assombroso.
As virtudes da comida de verdade
Já sabemos o que perderemos se não mudarem os sistemas de produção e consumo da humanidade: a própria vida na Terra. Talvez seja preciso lembrar também o que podemos perder se transformarmos a alimentação em mera inserção de nutrientes no organismo. O ato social, a comunhão e fruição de sabor em torno do fogo, darão lugar à ingestão sôfrega de misturas industrializadas sem tirar os olhos do computador?
Felizmente, há reações: do movimento slow food às políticas públicas de alimentação escolar que valorizam a produção da agricultura familiar local, não faltam exemplos de que é possível introduzir o vetor cultural e a educação alimentar para um desenvolvimento rural em bases duráveis. Educar para valorizar a alimentação saudável, a culinária regional e os circuitos curtos de produção e consumo parece um caminho inteligente para preservar ao mesmo tempo nosso entorno ambiental e nossa essência humana, num conceito de saúde e bem-estar únicos.
Um desafio a não esquecer, ainda pouco enfrentado, é o preço: comer frutas variadas sai muito mais caro que salgadinhos, batata frita com sabor de picanha ou bolachas recheadas.
“Alimentar o mundo”, esta expressão que adoramos usar por aqui, é bem mais complexo que bater recordes de produtividade, sem negar o valor destes. Justiça no acesso à comida de verdade – entendida como nutrição, sabor e cultura – através da ciência, tecnologia e políticas públicas, deveria representar a dimensão social da sustentabilidade e a grande causa da agropecuária.
P.S.: Triplamente honrado: com o convite da Adriana Moura, com a vizinhança ilustre e com o público tão qualificado, espero estar à altura, ao estrear esta coluna que tem a pretensão de olhar o desenvolvimento rural sob uma perspectiva cultural.
PARA OUVIR:
Tião Carreiro e Pardinho – O Rei do Gado – https://youtu.be/bv3593lmltY
PARA ASSISTIR:
André Klotzel – A marvada carne https://www.youtube.com/watch?v=y6oM2XdOVc4
PARA NAVEGAR:
Estratégia: Produzir, Conservar e Incluir – http://pci.mt.gov.br
Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável – http://gtps.org.br
PARA LER:
– Candido, A. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: EDUSP, 2017.
– Carneiro, H. Comida e Sociedade – uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
– Dunn, R.; Sanchez, M. Delicious: the evolution of flavour and how it made us human. Princeton: Princeton University Press, 2021.
– Franco, A. De caçador a gourmet. São Paulo: Editora SENAC, 2001.
– Mazoyer, M.; Roudart, L. História das agriculturas no mundo – do neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Editora UNESP; Brasília: NEAD, 2000.
– Rodgers, D.; Wolf, R. Sacred cow – the case for (better) meat: why raised meat is good for you and good for the planet. Dallas: BenBella Books, 2020.